Quando ele escolheu o nome Tina Turner e a minha mãe concordou, constatei, naquele momento, que ninguém leva a sério uma miúda de cinco anos, ainda que ela seja a menina do papá e todos a tratem por Betinha.
Eu queria chamar-lhe MacGyver, mas a minha mãe explicou-me que era um nome masculino e uma vez que se tratava de uma gata, não era apropriado. Às vezes as mães têm gostos muito estranhos, ela até podia não concordar com MacGyver, que a meu ver estava super na moda mas, concordar com Tina Turner? Espero que o meu irmão nunca tenha contado aos amigos que escolheu esse nome. Espero mesmo.
Nesse dia ele ganhou. Mas quando se tem onze anos é natural que se engane alguém seis anos mais novo, alguém como eu.
A verdade é que aquele era o meu segundo animal de estimação. O pato cresceu e acabou por ser assassinado pela minha mãe. Ainda hoje não como pato. Vi-o pela primeira vez numa feira. Era pequenino e amarelinho. A minha mãe não queria comprá-lo e eu resolvi fazer uma birra. O vendedor acabou por me oferecer o pato. As minha birras deviam ser muito más. Obriguei o meu pai a comprar uma coleira para o pato e passeava com ele na minha rua. O que os pais não fazem pelos filhos... E as figuras que os filhos fazem senhores.
A minha rua, há-de ser sempre a minha rua, palco de muitas brincadeiras.
Vivia no centro da vila. A meu ver , ainda hoje, um dos melhores sítios para se viver. Junto do café, da farmácia, da mercearia, da barbearia e do mercado. Também o médico e o ferreiro viviam na minha rua.
Naquela altura era ver os cavalos e os burros a passarem para o ferreiro. De vez em quando ia lá espreitar, não muitas vezes. Eu tinha algum medo do ferreiro, dizia-se que ele também arrancava dentes às pessoas com um alicate. Suspeito que tenha sido invenção do meu irmão para me assustar.
Gostava de ir à barbearia. Cheirava sempre a um perfume que todos os homens usavam na altura. O barbeiro era muito vaidoso, sempre com um ar muito limpo e aprumado. Às vezes sentava-me na cadeira a olhar para o espelho enquanto ele varria os cabelos que ficavam no chão. A mulher do barbeiro não trabalhava, estava sempre sentada na barbearia ou à porta a fazer renda. Desconfio que ela sabia muita coisa dado o número de clientes que frequentavam o estabelecimento comercial.
No dia de Santos e no dia de Natal batiam à minha porta para me dar uma nota. Já não me recordo do valor, mas lembro-me que dava para comprar muitas pastilhas gorila no café. Nunca tiveram filhos. Sempre cuidaram um do outro com uma extrema atenção.
Considerava os donos do café uma família. Ainda hoje quando lá vou não aceitam o dinheiro do café. Recordo-me daquela vez que lá fui comprar uma caixa de fósforos das pequenas para oferecer ao meu pai. Naquela altura não tinha noção do que era uma prenda. O meu pai fumava, logo uma caixa de fósforos devia ser útil. Embrulhei-a com a minúcia de quem embrulha uma jóia. Guardei-a até ao dia de aniversário. Ao abri-la o meu pai não conseguiu conter o riso , abraçou-me e disse-me que por acaso estava mesmo a precisar. O que os pais não fazem pelos filhos.
Nas noites de verão eu e o meu irmão brincávamos na rua. Eu exibia a minha bicicleta BMX com pratos laterais. Era vermelha porque eu era do Benfica e o meu pai também e foi ele quem comprou a bicicleta. Às vezes os pais têm gostos estranhos.
Andava para cima e para baixo na minha rua. Houve uma dia em que caí à porta do café. Morri de vergonha. O meu irmão em vez de me ajudar correu para casa a contar a notícia em primeira mão. Mais tarde também ele caiu da bicicleta e partiu dois dentes. Eu chorei porque pensei que ele ficar assim para sempre , destentado. Mas não, as coisas resolveram-se. O que os pais não fazem pelos filhos.
Ainda não falei do senhor da mercearia. Aquele que fazia as contas em papel manteiga. Uma vez não deixou o meu irmão levar as compras porque faltava um escudo. O meu irmão jurou que nunca mais lá ia. Então quem é que ele mandava comprar as bombocas?
Este senhor merceeiro também tinha o monopólio da venda de caixões lá na vila. Hoje são agências funerárias. Naquela altura ele só vendia caixões.
A farmácia continua no mesmo sítio. O senhor Alfredo já se reformou. A gerência é nova. O senhor Alfredo não era dali, veio trabalhar para a farmácia da vila quando era novo e ali ficou. Eu gostava do senhor Alfredo. Para além de estar sempre bem disposto, deixava-me cheirar os perfumes da vitrine e eu às escondidas punha um bocadinho no pescoço. Desculpe-me senhor Alfredo.
Já não sei muito bem porque escrevi este texto. Se por saudades de ter cinco anos ou com saudades do meu irmão ter onze.