"Durante o dia, os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli poderão trocar uma nota suja por pão (naan) e água. Enquanto o estiverem a mastigar, terão os olhos abertos e sentir-se-ão privilegiados. À sua volta, monges com os braços cortados pelos pulsos, cegos agarrados às paredes, raparigas despenteadas a vasculharem montes de lixo. Ao serão, os homens dobrar-se-ão sobre o banco do riquexó e, após instantes, poderão adormecer por fim. Se alguém chegar e lhes empurrar os ombros, serão capazes de reconstruir a organização dos ossos, passar a palma da mão aberta pelo rosto, lixa, e pedalar até onde for preciso, 10 rupias. O que se espera da vida? Há um corpo, a pele, e há o sofrimento que se é capaz de conceber, o conforto que se desconhece. Zé Luís, os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli estão neste momento a sonhar com aquilo que rejeitas e agradecer aquilo que deixaste de sentir. Não são eles que correm o risco de se esquecer da vida, és tu. O teu padrinho tinha uma bicicleta igual àquela com que eles puxam o riquexó. Lembras-te ainda de como soava a sua campainha à entrada da rua de São João? Lembras-te ainda da sua voz quando falava para ti?
Quanto estiveres a ponto de te preocupar com merdas, os dilemas da poesia portuguesa contemporânea, o IRS, o código do multibanco, os carros que te roubam o estacionamento, a falta de rede no telemóvel, as reuniões de condomínios, o tampo da sanita, lembra-te dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli. É essa a tua obrigação.
Nunca te esqueças do mundo, Zé Luís.
Podes estar descansado, Zé Luís. Eu não me esqueço."
José Luís Peixoto, in revista Visão (Abril, 2010)
Acho que hoje estava mesmo a precisar de ler isto...mesmo...mesmo!!